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ISBN: 978-85-61702-97-7
XI CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIVERSIDADE SEXUAL, ETNICORRACIAL E DE GÊNERO

Ciência e Arte do Encontro: o Rio de Braços Abertos
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Prefácio

A ARTE DO ENCONTRO COMO RESISTÊNCIA INTELECTUAL
Jaqueline Gomes de Jesus
"A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. Samba da benção, de Vinícius de Moraes. “
- Natural é as pessoas se encontrarem e se perderem. - Natural é encontrar. Natural é perder. - Linhas paralelas se encontram no infinito. - O infinito não acaba. O infinito é nunca. - Ou sempre”. O dia que Júpiter encontrou Saturno, de Caio Fernando Abreu.
“Os bons amigos sempre se encontram”. O Bebê de Tarlatana Rosa, de João do Rio

João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, cujo nome social era João do Rio, cronista da vida urbana no Rio de Janeiro do começo do século XX, jornalista e escritor popular e reconhecido pela crítica, membro mais jovem a ter sido eleito para a Academia Brasileira de Letras, em 1910, aos 28 anos, um homem negro e gordo, era particularmente perseguido por uma parcela da elite intelectual de sua época por também ser homossexual (CASTRO, 2019). Tentou ser diplomata, porém seu ingresso no Itamaraty foi barrado pelo Barão do Rio Branco, em 1902, sob o “argumento” de que a diplomacia brasileira não poderia ser representada por um homem “gordo, amulatado e homossexual” (CAIXETA, 2021).

Certamente surpreenderá a um número significativo de leitores dos nossos tempos (especialmente os acostumados a aplicarem termos como “comunidade” a qualquer conjunto de pessoas oriundas do mesmo grupo social historicamente discriminado, e esperarem identificação imediata entre esses indivíduos) descobrirem que ele era atacado sistematicamente, com o uso de termos extremamente virulentos, até mesmo por autores gordos, como Emílio de Menezes, que após a eleição daquele para a Academia, espalhou pelo Rio este poema:
Na previsão dos próximos calores A Academia, que idolatra o frio Não podendo comprar ventiladores Abriu as portas para o João do Rio

E Antônio Torres, para quem João do Rio tinha “beiçorra etiópica”, era “homem-torpeza que trouxe para o mundo todas as ancestralidades fétidas dos excrementos falsificados”, “invertido” e “pederasta passivo”. Torres tentou espalhar pela cidade um apelido para João do Rio: “Madame Bicicleta”, porque “todo mundo montava nele”.

Autores negros, como o próprio Torres, e Lima Barreto, igualmente, não se isentaram de atacar João do Rio, em função do que atualmente conseguimos reconhecer como homofobia. Barreto afirmou que se “recusava a dizer-se literato — porque João do Rio o é” e criou o personagem Raul de Gusmão, em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, como um homossexual inspirado em João do Rio, a quem se referiu como “misto de suíno e símio”.

Décadas depois, uma pesquisa de amostragem nacional (Instituto Paulista de Pesquisas de Mercado, 1983), cuja coleta de dados ocorreu em 1980, envolvendo 3.054 respondentes em capitais e grandes cidades, identificou que 57,1% dos entrevistados da cidade do Rio de Janeiro rejeitavam o que então se denominava de “problema do homossexualismo” (SIC), ao passo que apenas 8,7% consideravam normal ser homossexual. Era praticamente inexpressivo o número de respondentes que expressaram o desejo de ter um relacionamento sexual com pessoas negras, e a quase totalidade criticava a troca de casais, prática que, entretanto, era conhecida por 60% dos entrevistados.

De forma alguma a vida intelectual está dissociada da cultura que lhe possibilitou existir. Desse modo, a academia, por mais que busque observar a sociedade, tem nela raízes profundas, tanto naquilo que há de mais progressivo quanto de retrógrado. Cabe-nos ter consciência disso para não reproduzirmos formas alienadas de produção das Ciências.

As ideias não são estáticas no tempo – como as pessoas e povos, têm uma história –, formam memórias coletivas tanto para o seu grupo de referência quanto para a sociedade em geral, “em uma relação de seleção e reconstrução contínua” (JESUS, 2014, P. 6), e confluem, como uma maré, com seus altos e baixos, até o Brasil contemporâneo.

Em 2021, quando a nossa gestão foi eleita, por meio de uma assembleia geral ordinária virtual, devido ao isolamento físico decorrente da pandemia da COVID-19, decidimos que realizar o XI Congresso Internacional de Diversidade Sexual, Etnicorracial - CINABETH e de Gênero da Associação Brasileira de Estudos da Trans-Homocultura – ABETH presencialmente seria uma resposta altiva, e uma forma de resistência necessariamente ousada (senão abusada mesmo), tanto ao isolamento social vivido cotidianamente por Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Intersexo e outras pessoas discriminadas em função de preconceito contra a sua orientação sexual, identidade de gênero, expressão de gênero e/ou conformação corporal (LGBTI+), quanto ao fundamentalismo político-religioso, ofensivas anti-gênero e anti-LGBTI+ promovidas pelo então Governo Bolsonaro.

Por óbvio, os percalços institucionais da ABETH começaram muito antes do governo federal supracitado, remontando à oposição intelectual, cínica ou explícita, à agremiação dos outrora apontados como pecadores, criminosos ou doentes, simplesmente por expressarem suas orientações sexuais, vivenciarem suas identidades de gênero e expressões de gênero, e/ou nascerem com uma conformação corporal tidas como não hegemônicas.

Porém, não estarei errando muito ao acrescentar que sofremos mais impasses, particularmente, desde 2017, quando a gestão da primeira travesti, a professora Luma Nogueira de Andrade, iniciou-se no contexto do impeachment sem comprovação de crimes, um golpe branco contra a presidenta Dilma Rousseff (ANDRADE, 2021), passando pela gestão da primeira lésbica, a professora Bruna Andrade Irineu, eleita em 2018, que teve de lidar com os momentos mais críticos da pandemia de COVID-19 e do Governo Bolsonaro, obrigando que seu mandato fosse estendido, o que ocorreu também com o meu.

Note: foram três gestões femininas seguidas, contando com a minha, que frente a revezes políticos e sanitários resistiram e foram bem-sucedidas em cumprir a missão da ABETH de formar redes e ampliar saberes. A de Luma foi pioneira ao inserir os temas da interseccionalidade e das relações étnico-raciais, além de criar o prêmio ABETH de dissertações e teses, e a REBEH, revista acadêmica da associação, que devido ao trabalho incessante de Bruna, que expandiu vertiginosamente nosso impacto acadêmico e político, e possibilitou a REBEH alcançar a avaliação A2 da CAPES em minha gestão. A gestão de Bruna encontrou nos recursos de comunicação a distância uma alternativa para o isolamento, a qual possibilitou que no congresso de 2021 pudéssemos afirmar, sem nos expormos à COVID-19 e inclusive analisando os impactos dela sobre a população LGBTI+ (ANDRADE IRINEU & GOMES DE JESUS, 2023), que temas como vida e família não são exclusivos da extrema direita, mas também pautas e objetos de estudo urgentes para nós que questionamos a heteronormatividade e a cisnormatividade e vivenciamos dissidências sexuais e de gênero.

Ainda durante a eleição da minha diretoria havia dúvidas e medos, os quais eram explicitados, quanto à possibilidade de podermos nos encontrar no mundo físico em 2023. Compreendemos que teríamos mais ganhos do que perdas ao reduzir o controle panóptico digital (HAN, 2021), mesmo que isso significasse que os congressistas não poderiam acompanhar as discussões só virtualmente.

É claro que uma associação é criada com vistas à visibilidade mais ampla possível, entretanto não nos interessa, enquanto pessoas pesquisadoras LGBTI+ e aliadas, sermos apenas vistas, mas sobretudo nos vermos. Não nos interessa termos atribuídas a nós identificações estereotipadas, como ocorre tradicionalmente, quando somos objetificadas, mas nos construirmos coletivamente como intelectuais, dentro e fora da academia, inclusive nas ruas. Não há unidirecionalidade nesse fluxo, mas dialética: a sociedade civil mobiliza os estudos científicos, os quais – nem sempre em sintonia – impactam o movimento social (COLLING, 2018), e disso irrompem outras teorias e práticas.

A escolha do tema “Ciência e Arte do Encontro: o Rio de Braços Abertos” foi uma consequência “natural” da concepção presencial do Congresso, aliada à sua realização na cidade do Rio de Janeiro. O encontro precisava ser cara a cara, com a possibilidade de vermos e/ou tocarmos nossos corpos inteiros, não apenas do tronco para cima e dentro do retângulo de uma tela. Aproveitar a referência ao Cristo Redentor, um símbolo nacional, foi ao mesmo tempo um reconhecimento de nossa brasilidade quanto uma forma de apontar para nossos detratores que se os braços estão abertos para todos, não cabe sermos apartados deles. Nossa âncora estava, portanto, lançada na Baía de Guanabara.

Não foi fácil a navegação. As questões conjunturais e organizacionais trouxeram enormes dificuldades para o nosso mandato, porém vencemos os desafios, entre eles o de finalmente transicionar a própria associação, após 22 anos de sua fundação, enfrentando muita burocracia, custos financeiros, físicos e psicológicos, formando grupos de trabalho, construindo coletivamente e votando em assembleias extraordinárias, sob a presidência de uma mulher trans/travesti (esta que vos escreve), primeira pessoa negra a ocupar tal cargo na maior associação acadêmica do tipo em toda a América Latina, que abrange quase todas as áreas do conhecimento científico e artístico.

Este livro é uma culminância de toda essa trajetória de desencontros e encontros, de opressão e resistência, e do esforço monumental em organizar um evento internacional envolvendo milhares de pessoas, com pouquíssimos recursos, a partir de uma generosa emenda do saudoso deputado David Miranda (homenageado in memoriam na Cerimônia de Abertura, com a apresentação do solo “O homem no Congresso Nacional”, trecho da peça de teatro “3 Maneiras de Tocar no Assunto”, escrita e protagonizada pelo ator Leonardo Netto, e a honrosa presença do viúvo Glenn Greenwald e seus filhos), gerida inicialmente pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do Governo Bolsonaro, e sendo recepcionada pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania do Governo Lula, cujo apoio agradecemos. Com esse recurso, aprovado na forma do Termo de Fomento 936776/2022, pudemos realizar, na forma de uma política afirmativa, a formação presencial dos monitores em organização e monitoria de eventos, certificada pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro – IFRJ Campus Belford Roxo, e com auxílio financeiro e isenção de taxa desstes no CINABETH.

As centenas de resumos e textos completos de alto nível aqui publicados, entre produções teóricas, pesquisas empíricas, relatos de experiência e práticas profissionais, decorrem de 28 Simpósios Temáticos, número recorde de todas as edições do congresso, a saber:

• ST 01 - A RESPONSABILIDADE SOCIAL COM AS DIVERSIDADES NO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL;
• ST 02 - DIÁLOGOS E DISPUTAS LGBTI+ NA POLÍTICA INSTITUCIONAL;
• ST 03 - DISSIDÊNCIAS DAS SEXUALIDADES E DE GÊNERO E INIQUIDADES EM SAÚDE: VIOLÊNCIAS E SAÚDE MENTAL DE LGBTQIAPN+;
• ST 04 - DIVERSIDADE SEXUAL, ÉTNICORRACIAL E DE GÊNERO EM ESPAÇOS DE PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO: UM DEBATE SOBRE EPISTEMICÍDIO ACADÊMICO;
• ST 05 - EDUCAÇÃO SEXUAL E PARA RELAÇÕES DE GÊNERO, IDENTIDADE DE GÊNERO E SEXUALIDADES NAS ESCOLAS: PAUTANDO INFÂNCIAS, ADOLESCÊNCIAS E JUVENTUDES DE IDENTIDADES DISCIDENTES NO ENFOQUE DA EDUCAÇÃO EM DIREITOS;
• ST 06 - EMPREGABILIDADE LGBTQIA+: O DIREITO HUMANO AO TRABALHO E A RENDA;
• ST 07 - ENCRUZAS NEGRAS, INDÍGENAS, AFROINDÍGENAS E AFROAMAZÔNIDAS: RAÇA, GÊNERO E SEXUALIDADE EM AMÉFRICA LADINA/ABY AYALA/PINDORAMA;
• ST 08 - EPISTEMOLOGIAS DECOLONIAIS, INTERSECCIONALIDADE E TRANSFEMINISMOS: RAÇA, GÊNERO, CLASSE, TERRITÓRIO E MARCADORES SOCIAIS DA DIFERENÇA;
• ST 09 - ESTRANHAS/ES/OS NO NINHO;
• ST 10 - INFORMAÇÃO, TECNOLOGIA E GÊNEROS EM CONTEXTO LGBTQIA+;
• ST 11 - FABULAÇÕES CURRICULARES DE GÊNEROS, SEXUALIDADES E RAÇA;
• ST 12 - FAZENDO (O) DIREITO: A SUBVERSÃO E RESSIGNIFICAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICO-POSITIVAS E DO DIREITO EM PROL DE UMA CIDADANIA IGUALITÁRIA;
• ST 13 - GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL NA EDUCAÇÃO: INSURGÊNCIAS EM TEMPOS DE (RE)ESPERANÇAR;
• ST 14 - GÊNERO, SEXO E RAÇA: ENTRE A DISCURSIVIDADE E A MATERIALIDADE;
• ST 15 - GERAÇÃO: INFÂNCIAS, JUVENTUDES E VELHICES LGBTQIAPN+;
• ST 16 - HOMOSSEXUALIDADE E IGREJA;
• ST 17 - INTERSECCIONALIDADES EM BRASIL(IS) E ÁFRICA(S) NA DECOLONIALIDADE DOS CORPOS, ESPORTES E EDUCAÇÃO FÍSICA: GÊNERO, RAÇA/ETNIA, SEXUALIDADES E +;
• ST 18 - LESBIANIDADES E RESISTÊNCIAS SAPATÔNICAS;
• ST 19 - LINGUAGEM NÃO-BINÁRIA EM DEBATE;
• ST 20 - LITERATURA TRANSMASCULINA BRASILEIRA E OS ESTUDOS TRANS;
• ST 21 - O PACTO NARCÍSICO DA CISGENERIDADE: REFLEXÕES SOBRE A OUTRIDADE E A OFENSA DA NOMEAÇÃO;
• ST 22 - PLURALIDADES TRAVESTIS E TRANSEXUAIS: CORPORALIDADES VIBRÁTEIS;
• ST 23 - QUE CORPOS PODEM OCUPAR AS CIÊNCIAS DITAS EXATAS?;
• ST 24 - RELAÇÕES DE GÊNERO E DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO: QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS;
• ST 25 - RESISTÊNCIAS LGBTQIAPN+, INTERSECCIONALIDADE, DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS;
• ST 26 - SENTIDOS DO TRABALHO E POLÍTICAS DE EMPREGABILIDADE PARA PESSOAS LGBTQIAPN+;
• ST 27 - TEORIAS, TEOLOGIAS E PRÁTICAS INCLUSIVAS; e 
• ST 28 - TRANSFEMINISMOS: TEORIAS E PRÁTICAS PARA ALÉM DAS FEMINILIDADES

Em nome de toda a Comissão Organizadora e da Comissão Científica afirmo-lhe que esta será uma leitura aprazível e proveitosa, por meio da qual você, mesmo não tendo podido estar conosco no Rio de Janeiro em 21 de novembro de 2023, na atividade pré-congresso, o Esquenta CINABETH, e nem de 22 a 25 de novembro de 2023, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (a cujos gestores, trabalhadores e parceiros agradecemos a acolhida, mesmo que com percalços), poderá se encontrar conosco, com nossas ideias, afetos, conhecimentos e experiências no campo acadêmico, artístico e político. Torço para que você não apenas guarde nossas ideias contigo, mas que as multiplique, espalhe, para que a nossa coletividade seja, sobretudo, uma comunidade de destino, que abraça. Quiçá alcançaremos novos mares, navegando pelas antigas marés.

Muito obrigada. Axé e Até.
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